Academia Prosopon

A quem pertence este corpo?

Contribuindo com o  Pilar de Conhecimento da Academia Prosopon: ” Sofrimento Humano na Contemporaneidade”, Neyza Prochet, nos enriquece com seu original  artigo. “A quem pertence esse corpo”, destaca o adoecimento da pessoa também a partir de transformações no corpo, sofrendo um falseamento que o leva a desumanização: a Ante- Verdade.

Morremos cada vez mais saudáveis. Na tarefa de combater a morte e o envelhecimento, a vida passa a ser policiada do princípio ao fim, por regras, ditames, proibições que visam o prolongamento máximo de um estado corporal otimizado. Nossa sociedade, curiosamente, passa a ser ou muito jovem ou muito velha. Levamos cada vez mais tempo e dedicamos cada vez mais esforços para postergar as transformações corporais inerentes ao viver humano.  Levamos tanto tempo para aprender a conviver com as mudanças que, quando aprendemos, já está muito tarde para termos usufruído do prazer de vivê-las.

Mary Shelley tinha apenas 18 anos, quando escreveu a primeira versão de Frankenstein em 1816, um conto escrito numa noite de insônia. O livro descreve a ânsia e o sofrimento travado na luta do homem contra a morte e a finitude.

Embora a engenharia genética e as biotecnologias se aproveitem com mais freqüência e intimidade das metáforas possíveis nesta estória de terror, não podemos deixar de perceber a extensão da pergunta contida neste clássico. Se é verdade que a biotecnologia pode ser fundamental em prolongar vidas e a usufruir de uma vida mais longa e plena, também é verdade que podem produzir efeitos inesperados e novas patologias. A busca de uma perfeição física conduz a um excesso imagético que pode roubar a possibilidade de se ultrapassar a representação e/ou a inscrição simbólica do indivíduo.

Na Modernidade, o corpo era uma realidade fixa e natural, uma referência estável, apresentado como a morada do ser, da razão e da consciência. Na Contemporaneidade, mais do que o corpo anatômico funcionante da Medicina, mais do que o corpo imaginário da Psicanálise, o corpo da atualidade é um produtor de sentidos e de identidade.

O sujeito contemporâneo ressente-se não só das angústias ligadas ao tempo necessário ao estabelecimento de uma identidade pessoal, como também se vê privado de uma constância de referentes simbólicos nos quais possa se apoiar. Tem agora um corpo que precisa ser construído – conceito peculiar e recente que transforma o corpo pessoal em objeto público globalizado, passível de tantas estratégias tecnológicas quanto possível: cosmetologia, alimentação controlada, uso de anabolizantes, práticas de toda a forma de exercícios físicos, cirurgias.

Parafraseando Cazuza, os heróis morrem de overdose, paga-se a conta da lipoaspiração e do personal trainer para não se saber quem se é, à custa de um saber que fica nas mãos de um outro. As representações ideativas, simbólicas, são substituídas pela representação da coisa-corpo, pela força da imagem do que parece ser.

Gilberto Safra nos lembra que é uma tarefa ética – de cada homem e de seus representantes sociais – buscar uma organização de mundo que permita a um indivíduo morar, espacial e temporalmente, dentro de sua organização corporal. Apenas dessa forma lhe será possível ser e estar consigo, e com o outro, no mundo.

A criatura criada por Frankenstein pede o que todos pedimos: ter uma existência legitimada, uma subjetividade, ser amado. Frankenstein, como a ciência, pode criar corpos, mas não é capaz de realizar a criação de um indivíduo.

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