Dois temas muito investigados pela psicanálise na atualidade são o fetichismo e o narcisismo – temas vizinhos, porque dizem respeito a uma perda da capacidade humana em sustentar a alteridade na relação com o mundo. Romano (1994, p. 177) recorda que o significado original da palavra “fetiche” advém de “artefacto”, daí os termos em português “artificial” e “feitiço”, o qual, por sua vez, provém do latim facticius. Segundo a autora, o termo fetiche também estaria ligado à ideia de “imitar” algo, e estaria presente no vocábulo “maquiagem”, maken, to make, machen, os quais derivam por sua vez da raiz fació, facticias, feitiço, que em espanhol dá origem a afeitar (embelezar), afeite (cosmético), em francês feint, e também em espanhol hecho, hacer, daí hechizo (“artificial”, “fingido”, “postiço”). A partir desta compreensão, o objeto-fetiche é aquele que determina o fascínio.
Ainda para essa autora, o termo “fetiche” é usado em etnologia para designar aqueles objetos (pedaços de minerais, vegetais, peles ou pelos de animais, animais inteiros ou plantas de certa espécie) que adquirem a categoria de “coisas sagradas”, “respeitadas”, às quais se rendem cultos e sacrifícios, implicando com isso um caráter mágico-religioso; podem, ainda, ser equiparáveis ao “deus invocado”, abrindo caminho a um encadeamento de substituições simbólicas, “encarnando-o” ou atuando como intermediários para sua invocação (Romano, 1994, p. 176).
O objeto-fetiche remete, portanto, à ideia de uma força superior atribuída a um objeto carregado de propriedades mágicas, sendo que um dos efeitos gerados para o sujeito que dele se utiliza está na alienação advinda da idolatria. Assim, a teoria psicanalítica oferece uma compreensão de que a relação marcada pelo fetiche é aprisionante, uma vez que asfixia a relação entre sujeito e objeto, já que não há espaço para a existência de um outro na relação fusional que ela promove.
O filósofo Emmanuel Levinas (1980, p. 31) afirma que, atualmente, em nossa cultura, o Outro se encontra reduzido ao Mesmo; e que é justamente nesse movimento que está nossa definição da liberdade: “manter-se contra o outro; apesar de toda a relação com o outro, assegurar a autarcia de um eu. A tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não são paz com o Outro, mas supressão ou posse do Outro”. Para esse autor, ainda que o anseio humano em possuir acabe por afirmar, de alguma maneira, o Outro, tal afirmação se dá, inevitavelmente, como negação da sua independência; assim, “a posse é a forma por excelência sob a qual o Outro se torna o Mesmo, tomando-se meu” (idem, p. 33).
Safra (2004, p. 89), em “A po-ética na clínica contemporânea”, no capítulo intitulado “Os objetos e as coisas”, traz uma reflexão sobre o tema por um outro ângulo: a partir de uma discussão sobre a perda do estatuto da “coisa”, em nossos dias, e sua queda para o de “objeto” – e a consequente queda do ser humano de seu estatuto originário de “pessoa” para o de “indivíduo”, ou, ainda, de sua transcendência para um aprisionamento na imanência. Ele recorre a um estudo da palavra “coisa”, a fim de reencontrar seu sentido primordial e, assim, assinalar sua vocação: “a palavra que designa coisa, em russo, é vechy”, diz ele, “cuja etimologia remete ao significado de mensageiro, de profecia (veschat: profetizar). A coisa é mensageira do Outro, mensageira do Ser”; e continua seu raciocínio a seguir:
A coisa, ao deixar de ser mensageira, não mais traz ao ser humano a mensagem do Ser, dos outros homens e do divino. Ela perde seu estatuto e se objetifica. No momento em que uma coisa está objetificada, o ser humano perde, em sua relação com ela, a abertura necessária para sua historicidade. O objeto pode ter sua funcionalidade, sua estética, estando pronto para ser consumido, mas perdeu sua posição de mensageiro. O objeto tende a levar o ser humano para o desenraizamento de seu ethos. Cada coisa objetificada tende a levar a um maior adoecimento do ser humano, pois a coisa que perde seu significado coloca o homem em ruptura com o entorno que o sustenta (Safra, 2004, p. 89).
Apesar de a possível perda de seu estatuto originário empobrecer o mundo e adoecer o ser humano, as coisas, no entanto, quando preservadas em seu registro ontológico originário, não só dão durabilidade ao mundo humano, mas também permitem que o meio ambiente humano possa ressoar em significações, afirma Safra. Quando a transcendência é preservada em nossa relação com o mundo, “o cotidiano se povoa por meio das coisas, com a presença de muitos, com a presença do Outro. O mundo constituído por coisas, que são memória presentificada e abertura para o ethos […], as coisas preservadas em sua ontologia curam o homem (idem, p. 89).
Uma questão que se desdobra a partir dos assinalamentos dos autores mencionados é a seguinte: como é possível ao ser humano sustentar a coisa em seu estatuto de transcendência e, assim, também o próprio ser humano, manter-se em constante transcendência, evitando o despencamento na imanência, no Mesmo, no tédio, no Nada?
É a partir desse ponto que gostaria de trazer a contribuição de Mestre Eckhart, autor com quem tive meu primeiro contato a partir de um mini curso de Gilberto Safra (2006) intitulado “A conquista da serenidade frente ao destino”. Aqui, Safra, a partir de Eckhart, traz uma contribuição de extrema importância para quem pratica a psicanálise e está implicado na compreensão que o ser humano trava com o mundo à sua volta. Em uma linguagem psicanalítica, o pensamento eckhartiano traz uma excelente contribuição para o tão investigado tema conhecido por “relação de objeto”.
O teólogo e filósofo medieval nos leva a uma questão fundamental: a relação que tenho com o mundo, com os objetos, com o outro, ou, ainda, em sua própria linguagem, com a criatura, me liberta ou me aprisiona? Traz-me consolo ou aflição? Produz encontro ou maior fragmentação e solidão? No texto de Eckhart analisado por Safra, “O livro da divina consolação”, ele afirmará:
Em verdade, nem Deus nem o mundo inteiro seriam capazes de proporcionar verdadeira consolação ao homem que procura consolo nas criaturas. Mas quem na criatura só amasse a Deus e só em Deus amasse a criatura, este encontraria, em toda a parte, consolação verdadeira, merecida e sempre igual (Eckhart, 2017, pp. 11-12, meu grifo).
Uma outra forma de apresentar o assinalamento do teólogo seria afirmar que o ser humano deveria sempre usar o contato com o que é imanente (criatura) como meio para amar o transcendente, e apenas a partir da atenção mantida no transcendente se relacionar com o imanente. Ele acaba por apresentar, desta maneira, um caminho de reeducação em nossa maneira costumeira de amar, que tende a se vincular com o objeto de maneira fusional, direta, e não como um intermediário para a relação com um Outro que transcende o objeto em si. Nós usualmente tomamos o objeto como o ponto final de nossa interação e, para Eckhart, isso sempre será fonte de desconsolo, ou, ainda, de frustração, termo mais familiar para nossa maneira de pensar.
Assim, Eckhart aponta que uma relação de objeto saudável seria aquela que mantém um terceiro vivo e que não é, portanto, reduzida apenas à participação de duas partes (sujeito e objeto). Aqui também, tal como Levinas assinalou, o anseio em possuir o outro, bem como travar uma relação de exclusividade com o outro, é a causa de sofrimento e paralisia. E é dessa maneira que ele propõe ao ser humano que ocupe um lugar existencial assentado na “pobreza”; formulando seu argumento a partir de uma afirmação do Evangelho de Mateus, que diz: “Bem-aventurados os pobres de espírito” (Mt 5,3). Pobre, aqui, é o que nada tem; ser “pobre de espírito” é expressar, para Eckhart, as qualidades nobres do olho, que é destituído de cor e, portanto, suscetível a todas as cores:
Se o olho, no ato de perceber, tivesse em si alguma cor, ele não perceberia a cor que tem, nem a que não tem; é por carecer de todas as cores que ele conhece todas as cores. A parede tem uma cor, e por isso ela não conhece a própria cor, nem qualquer outra, e não se alegra com a cor, nem o ouro a alegra mais que o azul ou a cor do carvão. O olho não tem cor, e não obstante a tem, no sentido mais verdadeiro, pois conhece-a com prazer e deleite e alegria. E quanto mais perfeitas e puras são as forças da alma, tanto mais perfeita e complexivamente acolhem o que apreendem, e tanto mais recebem e se deleitam, e tanto mais se tornam uma só coisa com aquilo que percebem; tanto assim que afinal a força suprema da alma, despida de todas as coisas, e nada compartilhando com coisa alguma, recebe em si nada menos que o próprio Deus com toda a abundância e plenitude do seu ser.
Para Souza (2012), o tema central da obra pregada de Mestre Eckhart é justamente a Abgeschiedenheit, o desprendimento ou a liberdade do homem em relação a si mesmo e a todas as coisas. Segundo a autora, no entanto, é necessário se ter muito critério para compreender o sentido que o teólogo confere a esse termo, pois não se refere a uma simples ascese das representações, que é como poderíamos compreendê-lo ao traduzi-lo para o português como desprendimento, desapego, abnegação.
Não se trata da aquisição de um lugar em virtude de uma negação pura e simples, como que se privar ou se abster de algo, mas de uma plenitude de ser que não é da ordem de um lugar […] mais do que uma simples ascese em relação às imagens, o verdadeiro significado do desprendimento eckhartiano revela-se como uma participação em Deus (Souza, 2012, p. 114).
É interessante notar que Eckhart está oferecendo uma compreensão sobre como deve se dar o processo de identificação e de constituição do ser humano na interação com o mundo à sua volta: o Homem é um ser ontologicamente aberto ao Outro e profundamente dependente de algo para ter com que se identificar; e justamente devido a essa sua característica, podemos correr o risco de estabelecer uma identidade com o imanente, e interromper aí nosso processo de constituição; ao passo que também nos é possível atravessar o objeto com o qual nos relacionamos e buscar o Outro que se expressa através dele para, então, estabelecermos uma promissora forma de estabelecer identificação e relação.
Para Mestre Eckhart, ao conseguir se relacionar com a criatura, com o existente, com o mundo desta maneira, o ser humano passaria a existir por participação. Sendo uma criatura, ele compreende que o ser humano não tem existência em si, mas somente na medida em que participa da Verdade, do que é Real, ou seja, à medida que permite a esse Outro ter lugar na relação que estabelece com o mundo.
Para além do vocabulário religioso que Eckhart traz, o que me parece fecundo e passível de ser traduzido para a realidade clínica, é a lógica que ele nos apresenta e que está assentada na possibilidade de darmos lugar para um terceiro, um Outro, em nossa interação com o mundo; ao fazê-lo, não apenas preservamos a transcendência, a alteridade, o mistério daquilo com que nos relacionamos, como também nos preservamos em constante transcendência e abertura ao devir.
É de se notar que a proposta interventiva de Eckhart para nossa aderência aos objetos não está na realização de uma circuncisão em nossa capacidade de desejar – como aparece em muitas tradições espirituais –, mas em nossa maneira mesma de desejar, de se relacionar, enfim, de amar.
Esse projeto psicológico que ele assinala faz desdobrar uma outra faceta de sua teologia, que tem, de fato, um caráter antropológico, ou seja, que guarda em si um saber sobre o Homem, sobre a própria condição humana e que diz respeito à preservação do ser humano como pessoa – concepção tão trabalhada por Gilberto Safra e tema central da Academia Prosopon. A partir das contribuições de Eckhart, desenvolve-se a compreensão de que é apenas a partir da participação, e do gesto de receptividade ao transcendente, que o ser humano alcança sua realização, cumpre sua vocação existencial. Ainda que o teólogo alemão não tenha se dedicado a desenvolver uma antropologia fundamentada na concepção de pessoa ou prosopon (pessoa, em grego), é esse horizonte antropológico que ele delineia em uma passagem do “Livro da divina consolação”, quando afirma:
Se fosse possível esvaziar perfeitamente uma vasilha e mantê-la vazia de tudo o que pode enchê-la, inclusive do ar, a vasilha sem dúvida renegaria e esqueceria a sua natureza, e o vazio a levantaria até o céu. Da mesma forma, o estar nu, pobre e vazio de todas as criaturas soergue a alma para Deus (pp. 23-24).
Prosopon, pessoa, segundo a tradição cristã (Zizioulas, 1997; Yannaras, 2007), é uma maneira de ser e de estar no mundo (ou seja, de se estar posicionado diante do outro) por meio da qual o horizonte existencial humano, de sua realização, se dá a partir da relação com o transcendente; por meio da qual um ser humano faz de um Outro que o transcende a sua identidade, seu lugar, sua utopia pessoal. Assim, vir a ser pessoa demanda que se esteja em lugar paradoxal, que tem como mote fundamental a perspectiva de que “eu me torno mais eu mesmo quanto mais me torno Outro”.
Você pode acessar o minicurso de Gilberto Safra sobre o “Livro da divina consolação” intitulado “A conquista da serenidade frente ao destino” no pilar Espiritualidade e religiosidade na assinatura da Academia Prosopon. ACESSE AQUI!
Uma resposta
Olá João, como vai?
Obrigado por compartilhar esse excelente texto. Me ajudou muito a compreender melhor esse tipo de fenômeno. Sou-lhe muito grato!