O corpo humano se apresenta enquanto metáfora dos vários entrecruzamentos, potencialidades e dilemas estabelecidos pelas particularidades de nossa condição mais estrutural. Como eixo de sustentação de nosso ser, temos a experiência da coluna – esse conjunto ósseo responsável pela articulação entre os vários espectros de nossa relação com o mundo, uma vez que o mundo nos é apresentado através da corporeidade. A este respeito, Stein (2003, p. 647, tradução nossa) afirma:
“O homem se mostra enquanto um organismo de estrutura muito complexa: como uma unidade vital em contínuo processo de fazer-se a si mesmo e se transformar. [Sua estrutura] é uma unidade corporal-anímica que vai se tornando uma figura corporal cada vez mais diferenciada e de funções cada vez mais variadas, ao mesmo tempo em que expressa um caráter anímico mais rico e firmemente estabelecido. Tanto a constituição anímica como a corporal se desenvolvem em contínua atividade, que é o resultado da atualização de certas capacidades, e por sua vez, decide quais das diferentes possibilidades prefiguradas no ser do homem se tornarão realidade.”
Contemplar a coluna como conexão entre alto e baixo é também pensar que estruturalmente o ser humano é esse ser que pode transitar entre os aspectos mais basais da materialidade e as mais altas abstrações no campo daquilo que passa a escapar da tempo-espacialidade. Essa nossa verticalidade estrutural nos posiciona como seres que habitam no entre-mundos. Não à toa, a principal obra do filósofo russo Pavel Florensky, estudado e apresentado por Gilberto Safra, se nomeia “A Coluna e o Fundamento da Verdade” (2010).
Habitamos, portanto, no encontro entre dois mundos: de um lado, experimentamos a interioridade de um corpo ligado inextricavelmente às sensações, limites, potências, impulsos e dinâmicas de forças somáticas que tendem a buscar sua satisfação. Essa dimensão da corporeidade existe fundamentalmente no tempo e no espaço, portanto limitada e finita. Do outro lado, somos capazes de viver em meio à vida simbólica, esse reino intermediário em que podemos, a partir da apercepção dos objetos do mundo, colocá-los para além do contexto em que foram primeiro encontrados, bordejando portanto a infinitude e a atemporalidade. Em ambas as esferas, a força propulsora anseia pelo absoluto, ou pela plenitude. A dimensão basal da corporeidade anseia pela máxima realização de seus desejos (ou pulsões, em uma linguagem psicanalítica), enquanto o mundo simbólico brinca por meio de inter-relações criando e recriando a realidade em melodias singulares que almejam uma experiência de plenitude harmônica absoluta.
No pensamento taoísta chinês, encontramos tal posicionamento bastante presente em diferentes textos que abordam uma cosmologia Céu-Homem-Terra, na qual o ser humano é justamente colocado entre as demandas e anseios terrestres e celestes. Afirma Wu Jyh Cherng:
“Na simbologia do I Ching, existe a trilogia do céu, da terra e do homem. O céu é a antítese da terra. A terra é finita e o céu é infinito. Pode-se medir o tamanho da terra mas é impossível se medir o tamanho do espaço. O portão do Céu se encontra dentro do homem e é uma abertura onde a consciência do homem pode se encontrar com a dimensão da infinitude.” (s/d)
Por existirmos em meio a essas duas polaridades, temos dois eixos gravitacionais distintos: de um lado, buscamos as experiências agradáveis aos nossos sentidos, sejam elas vividas diretamente no corpo ou como ideias a respeito de nosso investimento em nossa própria imagem. Aqui, nossa atenção se move em direção à satisfação de nós mesmos, deste “pequeno eu” que habita a dimensão tempo-espacial. Do outro lado, somos também abertos a um infinito que se esquece desse “eu” e anseia por alçar vôos mais altos… Essa abertura é o que podemos nomear de espiritualidade, processo que se inicia pelo anseio de uma pessoa em mover-se para além de si mesma e experimentar consciências expandidas que passam a abarcar e incluir alteridades, tornando-se então a sustentação dessa pessoa o anseio pelo absoluto, pela verdade e pelo sagrado. Na tradição psicanalítica, podemos aproximar esse processo do conceito de realidade psíquica não-sensorial, conforme apresentado por Bion (1988).
Os caminhos de espiritualidade são amplamente vivenciados, investigados e preservados em diferentes tradições, comunidades e também nas descrições encontradas na vida de místicos e santos. Consideramos que abordar a espiritualidade a partir de psicologismos é um grave reducionismo e aqui pensamos tais fenômenos a partir da condição ontológica do ser humano.
Contudo, ao posicionarmos o ser humano nessa condição paradoxal de estabelecer um encontro entre polaridades, necessitamos levar em consideração que essa abertura à espiritualidade não é um fenômeno à parte em relação à vida psíquica e à corporeidade humanas. Ao contrário, tais dimensões são indissociáveis, entrelaçadas e unidas em infinitas possibilidades singulares. A espiritualidade de uma pessoa está necessariamente constituída em meio a sua biografia, a sua corporeidade e à complexidade de sua vida psíquica.
Isso significa, portanto, que a espiritualidade é um fenômeno complexo e multifacetado; longe de ser uma rota linear e contínua em direção a certos valores e experiências, é um processo frequentemente descontínuo, assimétrico e deceptivo, sujeito inclusive a uma iatrogenia; ou seja, a confusões e equívocos de todos os tipos que podem se dar justamente nessa fronteira entre as dimensões do ser humano que buscam a extensão e o investimento em si e as dimensões do humano que buscam o encontro com o além de si.
Essa perspectiva implica em pensar em uma antropologia que possa tocar nas fronteiras do ser humano entre sua dimensão imanente e transcendente. O filósofo russo Sergey Horujy aborda também essas questões de um modo dialógico ao tratar de regiões distintas da interioridade humana, nomeadas por ele de “topografias da fronteira antropológica”. Para Horujy, o ser humano se constitui por meio de três regiões topográficas distintas: em seu modelo, na parte superior encontra-se a “topografia da prática espiritual”, região de abertura à fonte do absoluto e que é caracterizada por um processo sucessivo de estágios de transcendência do ser empírico do homem. No registro inferior, há a “topografia da psicanálise”, região em que se encontram as figuras do inconsciente e os aspectos representacionais, subjetivos e biográficos de uma pessoa. Por fim, e bastante análogo ao que estamos nomeando dessa região de fronteira, Horujy fala de uma terceira região, localizada entre essas duas, que nomeia de “topografia híbrida”, na qual se produzem todo tipo de confusão entre o registro das práticas espirituais e dos processos subjetivos. Em suas próprias palavras:
“A Fronteira Antropológica é formada pelas duas regiões opostas ou topografias, a topografia da Supra-Fonte-para-Além (incluindo processos constituídos por sua influência, i.e. práticas espirituais) e a topografia da Sub-Fonte-para-Além (incluindo processos constituídos pela influência do Inconsciente). Mais precisamente, nós devemos também apontar uma região intermediária, que se encontra entre essas duas topografias: “a topografia Híbrida”, que abrange todo tipo de reduções e imitações, simulacros da prática espiritual. Tipicamente, estas são estratégias e procedimentos que visam reproduzir a estrutura ascensional da Prática Espiritual, mas são constituídas sob influências da consciência inferior, do subconsciente e do inconsciente. Esse tipo inclui muitas técnicas psicológicas modernas, práticas psíquicas de cultos arcaicos, como xamanismo, a “linha de baixo” do sufismo, etc.” (s/d, p. 9, tradução nossa)
Um fenômeno específico que pode ser colocado nessa região intermediária ou “híbrida” é aquilo que podemos nomear de adoecimentos espirituais: todo o campo de fenômenos em que, em meio a um caminho de espiritualidade, as complexidades da constituição psíquica de uma pessoa implicam em algum tipo de distorção desse processo de abertura que justamente estaria para além de sua constituição psíquica. Poderíamos falar aqui de uma contaminação ou confusão entre essas duas polaridades da condição humana, ou extremidades da coluna.
Os fenômenos dos adoecimentos espirituais são reconhecidos por algumas tradições espirituais. Podemos citar, a título de exemplo, a noção de “prelest” oriunda do cristianismo ortodoxo russo, que aponta a uma espécie de ilusão espiritual do buscador em meio seu caminho de devoção ao divino, que pode assim ser contaminado por seu próprio orgulho. Dentro dessa mesma tradição, temos o excelente trabalho de Larchet (2012), que busca, na antiga tradição dos padres do deserto, elementos para discutir a possibilidade de uma espiritualidade adoecida.
Santos e teólogos da tradição cristã ortodoxa como Santo Inácio Brianchaninov e São Simeão descrevem com detalhes os enganos e ilusões que podem se dar no caminho espiritual, como visões ilusórias, fantasias e delírios sobre entidades espirituais e desarranjos mentais causados pelo orgulho que se apropria do contato do praticante com sua prática de oração ou contemplação. Na visão de tal tradição, tais processos ocorrem quando a pessoa esquece de que é um pecador (ou seja, um ser material limitado e precário) e confunde seu próprio “eu” com o absoluto. Santo Inácio afirma (2016):
“O engano espiritual é o ferimento da natureza humana pela falsidade. O engano espiritual é o estado de todos os homens, sem exceção, e foi possível graças à queda dos nossos pais originais. Todos nós estamos sujeitos ao engano espiritual. A consciência deste fato é a maior proteção contra ele. Da mesma forma, o maior engano espiritual de todos é considerar-se livre dele. Estamos todos enganados, todos iludidos; todos nós nos encontramos numa condição de falsidade; todos nós precisamos ser libertados pela Verdade. (…) O método de oração mais perigoso e mais incorreto é quando quem ora fabrica, com a força de sua imaginação, sonhos ou imagens, tomando-os ostensivamente emprestados das Sagradas Escrituras, mas na verdade a partir de sua própria pecaminosidade e auto-ilusão. . Por meio dessas imagens ele se atrai para a auto-estima, a vanglória, a presunção e o orgulho. É evidente que tudo o que é fabricado pela imaginação da nossa natureza decaída, que foi pervertida pela queda da natureza, não existe na realidade.” (pp. 129; 131, tradução nossa)
Na tradição japonesa do zen-budismo, há também algumas descrições pontuais de adoecimentos espirituais que podem ser produzidos por um mau uso da prática meditativa, como aparece na autobiografia do monge Hakuin (1999) ao descrever seu sofrimento – constituído em meio ao seu desequilíbrio entre a prática introspectiva e sua vida ativa – como uma “doença zen”. Na tradição hindu, há também a figura mitológica dos asuras, entidades espirituais envaidecidas e decaídas que se tornam demônios, ou seja, o protótipo mesmo das confusões possíveis no registro do entre – quando o limitado se confunde com o ilimitado, o finito com o infinito.
Fenomenologicamente, o que acontece aqui? Podemos dizer que aquela dimensão do nosso psiquismo que é constituída pelo anseio de satisfação de si – ou seja, voltada para um incremento narcísico da ideia de eu que busca segurança, controle e garantia de amor dessa pequena entidade tempo-espacial – busca capturar e maliciosamente se apropriar das experiências manifestadas pela parte do psiquismo que busca ir além de si. Há uma confusão e uma contaminação entre esses dois registros, o que levaria à prelest, à doença zen, ou àquilo que podemos nomear de adoecimentos espirituais de uma forma geral.
O caminho de “reversão” desses processos seria – em linguagens distintas de acordo com cada tradição – que a pessoa possa se colocar em seu tamanho e medida, ou seja, que não perca de vista os contornos e limites que a caracterizam enquanto ente que existe no tempo e no espaço, para que a abertura ao transcendente ou infinito não seja capturada pelo orgulho e vaidade de sua identidade psíquica. Em outras palavras, seria tomar a experiência da humildade como critério basal e fundamental para exercer qualquer prática de espiritualidade.
Transpondo tais questões para uma linguagem clínica e contemporânea, podemos afirmar que existe todo um campo de fenômenos que não podem, de um lado, se encaixar nas tradicionais categorias de uma psicopatologia, e que de outro lado, necessitam ser cuidados a partir de um olhar clínico específico, que pode realizar uma discriminação cuidadosa de diferentes práticas e experiências atribuídas ao campo da espiritualidade. É necessário, desse ponto de vista, que tenhamos muito mais recursos epistemológicos para adentrarmos de maneira rigorosa na extrema complexidade desse assunto, que envolve também uma espécie de consciência de um diagnóstico diferencial entre o campo da mística e o da psicopatologia. Afirma Morano (2004, p. 184):
“A suspeita e o debate sobre o caráter são ou patológico da experiência mística têm governado a aproximação da psicologia e da psiquiatria a este tipo de experiência. […] Admitindo que, como sempre, há toda uma série de variáveis epistemológicas e ideológicas nas interpretações do fenômeno, também é necessário reconhecer que a fenomenologia da experiência mística se oferece ela mesma como um convite, em ocasiões irresistível, para suspeitar da existência de elementos de caráter manifestamente doentio. […] É um feito constatável para o clínico em geral que os estados místicos, com muita frequência, surgem com uma chocante e surpreendente analogia com determinados quadros clínicos, neuróticos e psicóticos, sobretudo com a histeria, com a depressão e com a esquizofrenia.” (tradução nossa)
Poderíamos afirmar, assim, que a investigação dos processos psíquicos pode também ser transposta para a compreensão de como a subjetividade empírica pode se cruzar, se entrelaçar e se confundir com o campo da espiritualidade, o que nos levaria a pensar em uma prática clínica que se estendesse precisamente a esse lugar de fronteira e intersecção entre o psiquismo e aquilo que lhe escapa.
Essa perspectiva permite estabelecermos um modelo da pessoa humana que não seja nem excessivamente romantizado pelas experiências religiosas, nem achatado pelas concepções psicológicas. Podemos pensar, assim, que o místico se relaciona com facetas do transcendente ao mesmo tempo em que em cada místico essas facetas se criam de um modo peculiar, em entrelaçamento com sua subjetividade, com sua singularidade e também com o contexto simbólico do tempo-espaço em que está existindo.
Especificamente nos dias atuais, como consequência dos modos de organização subjetivas profundamente narcísicos, esse tema nos parece de importância central na compreensão dos fenômenos religiosos e espirituais contemporâneos, bem como na prática clínica. Frequentemente desenraizada de qualquer tradição e de paradigmas de critério para uma prática rigorosa, a espiritualidade ocorre hoje em dia de maneira fragmentada, caótica e bastante sujeita a todos os tipos de ilusões e adoecimentos ocasionados pela profunda vaidade característica do empobrecimento vincular de nosso tempo.
Consideramos então que a clínica pode se apresentar como instrumento de diagnóstico, cuidado e destinação dos chamados adoecimentos espirituais, evitando tanto reducionismos psicológicos quanto espiritualistas. A sustentação do vínculo terapêutico pode se presentificar em um olhar ao mesmo tempo amoroso e rigoroso para a compreensão dos caminhos de espiritualidade atuais. Como ser que habita entre o finito e o infinito, ou entre a terra e a céu, que possamos sustentar, junto com Chuang-Tse (2017, p. 60), a eterna indagação paradoxal de nossa natureza cósmica:
“E a rotação do Céu?
E a imobilidade da Terra?
E a competição do Sol e da Lua por um lugar?
O que é que os rege e os aparta?
O que é que os ata e os interliga?
O que é que, imóvel e sem esforço, os empurra e faz andar?
Haverá moldas que os confinam, e não têm outra alternativa?
Ou giram por si próprios e não conseguem parar?”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS