Academia Prosopon

Entre a ameaça à dispersão e a busca por contornos

Desde que entrei em contato com o livro de Margaret Little intitulado “Psychotic anxieties and containment” (1990), pergunto-me sobre o porquê de terem-no traduzido por “Ansiedades psicóticas e prevenção” (1992), e não por “Ansiedades psicóticas e contenção”. O texto se organiza a partir do relato de inúmeras formas de contenção que Winnicott, analista de Little entre os anos de 1949 e 1957, realizou ao longo do trabalho analítico. Não há dúvidas de que o cuidado implicado e próximo despendido por ele preveniu sua paciente de experienciar estados de enlouquecimento, em muitas situações; mas o foco que ela dá a seu relato assenta-se nos gestos de contenção que ele fez a fim de promover contornos à sua ansiedade de qualidade psicótica. Em minha compreensão, a prevenção está relacionada a uma ação que visa o futuro, ou seja, impedir que um mal venha a acontecer; por sua vez, a contenção trata de uma ação que busca frear um mal que está acontecendo em determinado momento, dar limites definidos para uma experiência que se dá no presente e que ameaça uma pessoa a viver uma grande dispersão de si, um transbordamento arrebatador em relação ao qual não se vê em posse de recursos para dele se proteger.

Little (1992) menciona, em seu relato, viver constantemente sob um medo de “total destruição, de ser fisicamente mutilada, ficar irremediavelmente louca, ser morta, abandonada e esquecida por todo o mundo como alguém que nunca existira” (p. 31); ou, ainda, de sentir-se “como um balão furado, caindo continuamente; sem ter qualquer meio de comunicação e por isso estando totalmente isolada; estando desligada do próprio corpo; ou perdida no espaço” (p. 87). É a partir dessa intensidade de experiência subjetiva que ela qualifica suas ansiedades de “psicóticas”; e será justamente para fazer frente a esse estado psíquico específico que ela irá conceitualizar a “contenção” enquanto posicionamento clínico e ético.

O termo “contenção” pode transmitir um sentido negativo, na medida em que remete, com frequência, a um ato violento, repressor ou opressor da vontade alheia. De fato, os muitos exemplos de contenção que Little relata ter recebido de seu analista deram-se por meio de um posicionamento contundente da parte de Winnicott, inclusive por meio do uso do corpo; no entanto, o resultado foi sempre o de um cuidado protetivo a partir da oferta de bordas para sua experiência de caos ou desorganização. Um exemplo disso está na situação em que ela diz ter sido, em uma sessão, dominada por acessos de pânico:

Repetidamente sentia uma tensão começar a surgir em todo o meu corpo, alcançar um clímax e diminuir, apenas para surgir novamente alguns segundos depois. Eu segurava as suas mãos [de Winnicott] e as apertava com força até os acessos passarem. No final, ele disse que achava que eu estava revivendo a experiência de ter nascido: ele segurou minha cabeça durante alguns minutos, dizendo que imediatamente depois do nascimento a cabeça de uma criança podia doer e parecer pesada durante algum tempo. Tudo aquilo se encaixava, porque tratava-se de um nascimento para um relacionamento, via o meu movimento espontâneo, que era aceito por ele. Aqueles acessos nunca voltaram a ocorrer e apenas em raras ocasiões senti aquele grau de medo” (pp. 45-46).

 

Uma outra situação relatada, na qual a estratégia de Winnicott de intervenção clínica – por meio da contenção – dera-se por vias corporais, é a seguinte:

Em certa época, eu era capaz de sair correndo furiosa da sua sala e ir embora dirigindo perigosamente. Ele guardava as chaves do meu carro até o final da sessão e depois deixava eu deitar sozinha e tranquila em outra sala, até poder estar livre de perigo. Ele enfatizava a necessidade de “voltar” da regressão profunda para a vida comum, porque “regressão para a dependência” significa regressão para a dependência para a própria vida — ao nível da infância, e às vezes até mesmo da vida pré-natal (p. 47).

 

A contenção, aqui, certamente deu-se a partir de uma redução da liberdade alheia, mas apenas na medida em que o uso de tal liberdade poderia resultar em um perigo para a própria paciente e para os demais; tal intervenção aconteceu no sentido de criar fronteiras (concretas, inclusive: as paredes de uma sala) a fim de que o paciente se recuperasse de uma desorganização e pudesse vir a se tranquilizar.

O cuidado via contenção também assumia a forma de oferta de um lugar – talvez o representante do corpo do analista e de sua capacidade em cuidar, que para Winnicott (1945d) se traduz por sustentação (holding), tato (handling) e apresentação de objeto (object presenting). Winnicott frequentemente se preocupava com sua paciente quando ele estava prestes a sair de férias; não sabia o quanto a falta de seus encontros poderia afetá-la. Certa vez, a contenção que ele realizou nesse contexto deu-se quando entrou em contato com uma das amigas de Little, sem que ela soubesse disso, para que fosse convidada a viajar com mais duas outras amigas (Little, 1992, p. 47); ou seja, Winnicott arquiteta uma viagem para sua paciente, a fim de que se sentisse acompanhada e não corresse o risco de se desorganizar em sua ausência, já que atravessavam um momento delicado do processo analítico.

Os exemplos mencionados até aqui representam a oferta de contenção em seu caráter mais concreto, corporal, nos quais o analista se posiciona de forma contundente diante de seu paciente; mas Little também menciona formas mais sutis por meio das quais recebeu de Winnicott delineamentos para sua experiência, e que lhe foram terapêuticos. Nesse caso, foram manejos em relação ao próprio setting de trabalho; a exemplo disso, temos o seguinte relato:

Logo Winnicott descobriu que durante a primeira metade de todas as sessões não acontecia coisa alguma. Eu não conseguia falar até atingir um estado de tranquilidade, não perturbado por qualquer invasão, como pedirem para dizer o que estava pensando etc. Era como se eu tivesse de assimilar o silêncio e a calma que ele proporcionava. Aquilo era muito diferente das perturbações da infância, do estado de ansiedade da minha mãe e da hostilidade geral da qual eu sempre senti necessidade de fugir para encontrar paz. A partir de então ele aumentou a duração das sessões para uma hora e meia, sem cobrar a mais, até quase o final da análise” (Little, 1992, p. 46).

 

Ou, então, em uma situação na qual Little havia caído em uma profunda depressão, não conseguindo sair de casa:

Não conseguia ir me encontrar com Winnicott para as minhas sessões. Ele foi à minha casa — cinco, seis e às vezes sete dias por semana, durante cerca de três meses. Cada sessão durava noventa minutos. Em quase todas, eu simplesmente ficava deitada chorando, amparada por ele. Winnicott não me pressionou, ouviu minhas queixas, demonstrou que reconhecia o meu sofrimento e podia suportá-lo. Quando me recuperei fisicamente, a depressão desapareceu pouco a pouco e pude voltar a trabalhar” (Little, 1992, pp. 53-54).

 

Mais sutil ainda, foi a forma de contenção que Winnicott ofereceu ao emprestar seus sentimentos para sua paciente pudesse acessar os seus próprios; isso se deu na medida em que ele disponibilizou sua corporeidade e sua afetividade como uma resposta natural a situações difíceis que Little relatava sobre sua infância – estratégia que estava pautada na compreensão que ele houvera formulado sobre a função especular do analista (Winnicott, 1967c):

“Donald Winnicott não se defendia de seus próprios sentimentos, mas ao contrário, aceitava-os em toda a sua extensão, e os expressava quando apropriado. Era capaz, sem sentimentalismo, de sentir emoções em relação a um paciente, com ele e por ele, e conseguia penetrar em sua vivência e partilhá-la de tal modo que a emoção, que teria sido reprimida, era liberada. Certa vez falei-lhe de uma perda que recordava ter sentido quando muito pequena. Eu fizera uma amiga, A., na escola. Fora ela quem me havia escolhido para ser sua amiga. Ela me dera livre acesso à sua casa, ao seu quarto, à sua babá e aos seus brinquedos. Certo dia, depois das férias, ela não morava mais no mesmo lugar. Depois, durante vários dias, ela “estava doente”, e depois “morta”. Eu fora “má” e “egoísta” – dizia minha mãe – por não lhe ter escrito. Certamente, “eu não a amava”, ou então “teria escrito”. Winnicott verteu lágrimas por mim, e eu pude chorar como jamais o fizera antes, e finalmente fazer o meu trabalho de luto” (Little, 1992, p. 47).

 

Devolver para a paciente um sentimento, que até então não havia sido validado por alguém, é torná-lo real.; é dar um contorno para uma experiência que ainda permanecia sem lugar dentro de si e, portanto, estranha e geradora de confusão. A contenção aqui deu-se por meio de uma oferta de uma referência, de um parâmetro da realidade.

Assim, a partir dos exemplos selecionados, é possível formular uma compreensão muito ampla do que vem a ser “contenção”: não se trata apenas de uso da força física a fim de imobilizar alguém que se mostra fora de controle, mas da oferta de parâmetros, limites, bordas, contornos para que o outro possa se situar, se tranquilizar; enfim, para que possa retornar para si e encontrar um centro de ancoragem que lhe dê sustentação e senso de continuidade.

Todos nós estamos frequentemente entre um estado de ansiedade que nos convoca a viver algum tipo de dispersão de si e a busca por contornos que aplaquem essa dispersão, e que nos ajudem a retornar para um centro pessoal. Todo tipo de ansiedade nos leva a uma perda de conexão psicossomática: frio na barriga, boca seca, tremor nas mãos, suor intenso, gagueira, “branco” na memória, são alguns exemplos cotidianos da reação corporal a algum tipo ansiedade, a partir dos quais buscamos contenção e destinação. Em momentos como esses, muitas pessoas recorrem ao cigarro, à comida, à música, ao movimento ou exercício físico, ao diálogo com alguém, entre outras possibilidades. Um dos protocolos que psicólogos e médicos têm compartilhado com seus pacientes em situações de crise de pânico é que se concentrem em um músculo do corpo e o enrijeçam; ou, então, que segurem uma pedra de gelo na mão e a apertem com força. A mecânica dessas dicas está em ajudar a pessoa a criar um novo foco de atenção que a ancore em seu corpo, que a faça retornar para seu corpo e, assim, readquira alguma integração psicossomática. Os remédios psiquiátricos também são usados para oferecer contenção às pessoas, na medida em que podem reduzir alguns estímulos cerebrais e gerarem alternativas a certos padrões mentais.

Existem também formas cotidianas sutis de encontrar contenção: a meditação, por exemplo, é uma forma por meio da qual se busca silenciar os pensamentos automáticos, ou seja, contendo-os a partir de uma determinada postura física, de um cheiro de incenso, de uma música relaxante, de uma oração. A oração, aliás, para algumas pessoas, é uma excelente forma de organizar seu mundo mental e emocional, na medida em que se consegue, por meio dela, criar um lugar para a atenção; ou seja, dá-se contenção: aqui, como a oferta de um caminho, destino para as atividades internas.

Tendo isso em vista, penso que o livro de Little nos apresenta uma profunda compreensão sobre à dinâmica a qual estamos constantemente submetidos: o interjogo entre a ansiedade – fenômenos causadores de dispersão e dissociação psicossomática – e busca por contornos, limites, contenção. Eis o diálogo entre uma dupla de experiências que nos demanda criatividade, boa vontade e boas companhias.

É possível aproveitar o que a autora explicita e usar a leitura oferecida por ela como uma avaliação diagnóstica: como cada pessoa (inclusive nossas pacientes) vive a dinâmica entre esses dois fenômenos?

 

O livro de Margaret Little aqui mencionado foi tema de 8 aulas de Gilberto Safra no ano de 2004. Esse curso recebeu o título de “Ansiedades psicóticas e prevenção. Estudo de Margaret Little como paciente de Winnicott”. Você pode encontrá-lo no pilar Contribuição do Grupo Independente de Psicanálise (Escola Inglesa) na assinatura da Academia Prosopon. ACESSE AQUI!

Em 2005 Gilberto Safra também ministrou um curso de 7 aulas intitulado “Transferência neurótica e transferência psicótica. Estudo sobre as contribuições teóricas e clínicas de Margaret Little” – uma outra oportunidade para conhecer o pensamento da autora –, que você pode encontrá-lo no pilar Contribuição do Grupo Independente de Psicanálise (Escola Inglesa) na assinatura da Academia Prosopon. ACESSE AQUI!

 

Referências:
LITTLE, M. (1990). Psychotic anxieties and containment. New Jersey: Jason Aronson.
LITTLE, M. (1992). Ansiedades psicóticas e prevenção: registro pessoal de uma análise com Winnicott; tradução de Maria Clara De Biase Fernandes. Rio de Janeiro: Imago.
WINNICOTT, D. W. (1945d/2000). Desenvolvimento emocional primitivo. Em: Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas. Imago.
WINNICOTT, D. W. (1967c/2019). “O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”. Em: O brincar e a realidade. São Paulo: UBU.

Respostas de 3

  1. Olá, Paulo
    Que tema complexo e que mergulho rigoroso o seu…

    Apenas retornando algumas ressonâncias que surgiram em mim.
    Creio que o corpo fomenta a humildade necessária, não é mesmo?!
    Uma vez obtive uma informação que, desde então, me traz um grande alento.
    Para respirar bem, não necessitamos de esforço. A respiração é humilde…
    Quando desaparece o esforço para respirar, somos inspirados…

    A respiração é uma “companheira ” discreta, fiel e sábia…rs

    E também me lembrei, lendo seu texto, de Cecília Meireles

    ” No mistério do sem fim
    equilibra-se um planeta.
    E, no planeta, um jardim,
    e, no jardim, um canteiro;
    no canteiro uma violeta
    e, sobre ela, o dia inteiro,
    entre o planeta e o sem fim,
    a asa de uma borboleta.”

    Grande abraço,

    Samira

  2. João Pedro, muito interessante o seu texto! Tive insights sobre contenção em atendimentos com meus pacientes! É um convite para ler o livro de Margaret Little e assistir as aulas do Gilberto de 2004 e 2005!

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