Academia Prosopon

Fonemas e grafemas e mares sem fim

A crônica de Luci Mansur, contribui com reflexões relevantes à Academia Prosopon, destacando, entre outros, a temática da transgeracionalidade. O ser humano, que é finito, alcança a infinitude através do Saber/Verdade que une os que foram (passado), os que aqui estão (presente) e os que virão (futuro), na dança das ondas do tempo.

Voltaram ao mar após alguns anos. O menino e a mulher encontram-se na praia e ali brincam e conversam. Melhor dizendo, brincam de conversar. Como ele demonstra gostar das palavras, ela pergunta se ele já sabe escrever. O menino pequeno, mas valente, responde que se ela soletrar, ele consegue.

A mulher pronuncia as letras de seu primeiro nome e ele vai desenhando, na areia, a sequência sonora dos sinais que a nomeiam e identificam. Realizado o desafio, a leitura é feita algumas vezes e eles sorriem cúmplices. Satisfeitos com aquela conquista, uma brincadeira feita a dois tendo o céu, o mar e a mãe por testemunhas.

Permanecem juntos longamente, buscando a verdade de cada um em cada jogo perdido ou ganho. Raiva e risos diante de regras e limites, de habilidades e astúcias.  Frente a imensidão daquelas águas, o tempo vai escoando sem cessar, deixando as marcas de sua passagem. Não há como detê-lo, assim como o movimento e a escala das marés. Ir e voltar, chegar e partir.

Enfim, chega a hora de irem embora. Despedem-se com tristeza, por saberem a saudade. Com alegria, pela profundidade do encontro. Cada um retorna ao próprio mundo, centenas de quilômetros de distância. Passam-se alguns dias e acontece a surpresa. A beleza de uma imagem inunda a tela do celular da mulher, tal como uma inesperada onda gigante.

Impactada, ela vai tentando surfar o turbilhão de sensações. Aos poucos, reconhece que os símbolos gráficos representam as letras de seu nome, que surge boiando na superfície quase líquida do box, durante um banho do menino. Sob a fotografia, assemelhada a uma obra de arte, apenas uma legenda enxuta: “Olha, mamãe, o que eu escrevi…”.

A mãe, que presenciara a comunhão entre eles, fotografa imediatamente as marcas no vidro, entre gotas d’água e denso vapor. Capturado o momento, ela envia a foto para a mulher, que chora ao sentir o enorme significado do presente que recebe. Condensada no gesto livre da criança e na delicadeza do registro materno, esta oferta produz uma doce epifania.

Ele desenhou seu nome novamente, já mergulhado no mar ancestral da memória. Agora a mulher está inscrita num campo simbólico-amoroso e o menino tem a escrita para lidar com ausências e enfrentar saudades. Algo que os contém e ultrapassa, na espiral das gerações. Além do mar e além deles, inaugura-se um espaço de pura transcendência.

Um sentimento oceânico toma conta da mulher. Entre lágrimas, que escorrem pelo rosto como as gotas naquele box, ela sorri pensando que vai anotar esta história para ele. Para permanecer como presença, imersa nas águas do tempo. E encontrar alguma forma de duração em incerto, porém sonhado, futuro.  Simplesmente porque palavras são coisa muito séria.

Respostas de 24

    1. Agradeço seu comentário, querido João Pedro
      A vida talvez seja uma extensão da clínica e a clínica uma vida extendida…

  1. LUCI : iluminadora de palavras e de grafemas,
    dedilhas letras e compões música com as palavras
    Tua inteligência sensível faz do olhado dentro ou fora uma pintura sonora , compondo letras e palavras em imagens vivas que nos aproximam da cena ad mirando.
    Tuas crônicas contam e nos descansam . São saborosas como fruta madura alcançada no galho.
    Obrigado pelos presentes eventuais minha Mizi!

  2. Luci querida! Que linda sua crônica! De uma delicadeza e profundidade que me levou a vislumbrar um filme enquanto lia. Muito obrigada pela sensibilidade compartilhada!
    Abraço afetuoso!

  3. Que linda crônica, Luci!!! Tenho sentido tanta falta da beleza, ela anda tão escondida, ofuscada talvez pelas violências noticiadas pelos jornais, pela banalidade veiculada pelas redes sociais… Seu texto foi como um bálsamo para o meu coração. Obrigada.

  4. Luci, fico admirada com sua habilidade de escrever coisas profundas de forma leve e delicada! A leitura da crônica coloriu lembranças de uma infância com meu avô guiando uma Kombi e ensinando os netos, com toda a paciência do mundo, a acampar pela primeira vez! Parabéns por tocar de diferentes formas o coração de muitos! ❤️

    1. Querida Isabel, suponho que estas lembranças também inspiraram a realização de seu valioso projeto “Café com Memória”. Agradeço sua leitura, torcendo para que os encontros com idosos com perda de memória voltem a acontecer pelos cafés da cidade de São Paulo!

  5. Nossa, Luci!! Você me pegou de cheio com o seu texto!! Grata pelo convite à leitura. Estou aqui ainda em meio às lágrimas pelo “enorme significado do presente” que você recebeu. Você, sensivelmente alfabetizada, pôde fazer essa leitura daquelas letras e nos escreve a escrita do menino que atravessa o tempo, o espaço, as gerações, os humanos… Porque também somos a criança que escreve, escreve e escreve nas areias da praia. Obrigada, querida.

    1. Fátima querida, muito bom ler seu comentário e nos encontrarmos aqui, transitando por todas as idades e por tantas praias… Obrigada pela leitura!

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