Academia Prosopon

Uma matéria publicada recentemente em um jornal de grande circulação trouxe a seguinte chamada: “Ansiedade entre crianças e jovens supera a de adultos pela primeira vez no país”[1]. A matéria aponta que as causas para o aumento significativo da ansiedade desse público seriam: as crises econômicas e climáticas, autodiagnósticos simplistas e o uso excessivo de celulares e jogos.

Como clínicos, temos testemunhado essa realidade há algum tempo, já que são recorrentes nos relatos de jovens o sofrimento desencadeado pela ansiedade, pela solidão e pelo vazio. Também temos acompanhado o sofrimento decorrente da impossibilidade de interação social, ou, ainda, das tentativas frustradas em estabelecer relações (presenciais) mais profundas de amizade, amor e afeto.  Até os namoros têm sido virtuais, e são comuns os relatos de que, “do nada, a pessoa sumiu e nunca mais me respondeu”.

Lembro-me de “Canção da América” (1979), composta por Milton Nascimento e Fernando Brant:

 

“Amigo é coisa pra se guardar

Debaixo de sete chaves

Dentro do coração….

….Mas quem ficou, no pensamento voou

Com seu canto que o outro lembrou

E quem voou, no pensamento ficou

Com a lembrança que o outro cantou”

 

A amizade pode ser compreendida e vivida por nós como extensão do berço, uma vez que proporciona proteção, acolhimento e segurança. A amizade pode ser o melhor lugar do mundo! É lembrança que fica e nutre o coração; é música que nos embala nas horas mais difíceis.

É necessário lembrar que não são apenas os jovens que têm sofrido por não encontrarem a experiência da amizade real, da presença de alguém que os acompanhe na vida. E quando pacientes que são atravessados por essas questões chegam até nós, vemo-nos diante da pergunta que deve ser sempre nossa companheira de trabalho: como posso ajudá-lo com esse tema?

Gilberto Safra (2004)[2] chama a atenção para o tema da amizade na experiência clínica e nos convida para um reposicionamento – de nós, profissionais – diante de nossos pacientes, justamente por conta dos tipos específicos de sofrimento e de demandas que recebemos atualmente. Ele afirma, a partir de Florensky:

 

“…. A amizade, aqui não é fruto de derivações psíquicas, ela é fundante, o que possibilita a condição humana. Ela é acolhimento do nascimento do ser humano, o que permite um lugar para si entre outros homens (Sobórnost)…A amizade, como a abordo aqui, não significa bondade, mas sim solidariedade…. Amizade não é sentimento, é fundamentalmente um lugar: comunidade de destino!” (p. 125).

 

O autor não está, aqui, referindo-se à amizade como aquela que se vive normalmente entre amigos, ou seja, no registro social. Ele discute a dimensão da amizade que muitos clínicos têm que estabelecer com seus pacientes como fruto de uma relação ética, ou seja, algo que se vive no registro ontológico, referente aos fundamentos da condição humana, que possibilitam a entrada de uma pessoa no mundo humano.  Inclusive, em suas aulas sobre Florensky, esse tema (a amizade na clínica) tem sido discutido profundamente. Nessa nova posição do analista, qual seja, a de colocar-se em comunidade de destino com seu paciente, percebemos que sentir-se inserido é condição fundamental para que aquela pessoa continue seu processo de amadurecimento e sinta-se viva.

E a amizade, tal como a conhecemos (aquela entre amigos), é alimento para a alma e permite-nos vislumbrar os mais belos horizontes – estando longe, mas ancorado na “lembrança que o outro cantou”; ou, estando perto, quando for possível. Em tempos disruptivos, poder contar com um amigo que nos ajuda a saber quem somos e que não se faz estrangeiro diante de nossas angústias, é poder acreditar que a vida vale a pena ser vivida, como nos ensinou Winnicott (1971).

 

Referências Bibliográficas

Winnicott, D. W (1971): O conceito de indivíduo saudável. In Tudo Começa em Casa. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes e UBU Editora. 2ª Reimpressão, 2023.

 

[1] Folha de São Paulo, Caderno Saúde, Edição impressa de 01 de junho de 2024.
[2] A po-ética e a clínica contemporânea (2004).

Respostas de 6

  1. Fico feliz em ver um texto tão profundo e complexo e, ao mesmo tempo, tão necessário, circulando nas mídias. O sofrimento destas crianças e jovens é gritante…É preciso que se faça eco e mais pessoas possam ouvir/escutar.

    Parabéns, Margarida e…
    Obrigada

    Samira C Zar

  2. Amizade como um lugar, para ser e estar e ficar… Essencial manter isso presente na clínica e na vida. Na vida da clínica, como você enfatizou, Margarida!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *