Ana Cristina Gomes Bueno faz uma deliciosa introdução à biografia da psicanalista Marion Milner, trazendo passagens instigantes de sua vida que contribuíram para a formação de seu pensamento original e criativo. O artigo incita a curiosidade para se conhecer mais sobre as ideias e concepções clínicas dessa autora, integrante do Grupo Independente da Sociedade Britânica de Psicanálise. Se quiser conhecer mais sobre Milner, acesse o “Pilar Grupo Independente” aqui no site da Academia Prosopon e mergulhe em um curso oferecido por Gilberto Safra que consiste em 12 aulas sobre essa incrível autora.
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que
Eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre outro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
Insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.[1][1] Manoel de Barros – Poema. In: Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia, p.125
A vida vivida e a obra tecida
Marion Blackett nasce em 01 de fevereiro de 1900 em uma família com traços de nobreza e importância social na Inglaterra. Há um mito de que essa nobreza seria só por parte de mãe, mas isso não é condizente com a verdade. O pai de Milner, segundo Emma Letley[1] (2014), também teria tintas aristocráticas.
A vida financeira dos Blacketts, no entanto, não é exatamente um sucesso. O pai de Milner, Arthur, não era um homem especialmente dotado para a vida prática e não tinha grandes afinidades com o mundo comercial, o que levou a família — que não era pequena — a ter sérios problemas financeiros, acarretando uma série de mudanças de residência, a despeito da posição aristocrática.
Em decorrência dos problemas financeiros, mudam-se para uma cidade pequena e a Senhorita. Blackett começa a trabalhar. Seu primeiro trabalho remunerado foi dar aulas para um menino canadense com dificuldades de aprendizagem. Questões relacionadas ao aprendizado sempre foram uma preocupação forte para ela, que questionava profundamente os métodos pedagógicos utilizados na Inglaterra. A Senhorita. Blackett não concebe uma metodologia que não envolva a beleza. Ela começa por inovar, ao perceber que, fechada em uma sala, não conseguirá despertar o interesse de seu aluno e o leva para passear em um parque. Logo descobre que outras pessoas também questionavam o modelo pedagógico tradicional e encontra um grupo que compartilha dessas ideias.
A senhorita Blackett inicia muito cedo o hábito de escrever diários, mas diários que registram memórias e impressões estéticas que tocavam o si mesmo. Muitos desses diários se transformaram em livros, que tiveram alguma repercussão na Inglaterra. Escreveu alguns de seus livros, inicialmente, sob o pseudônimo de Joanna Field, os quais, ao serem reeditados, constavam os dois nomes. O primeiro desses diários foi A Life of One’s Own, título inspirado no livro de Virginia Woolf: A room of one’s own. (Sendo que o de Virginia foi publicado em 1929 e o de Field em 1934).
A Senhorita Blackett vivia períodos de profunda transformação e angústias intensas ao iniciar a escrita deste diário. O que mais impressiona é a honestidade com que expõe suas percepções. Descreve nesse diário o sentimento de ausência e falta de sentido no qual sua vida estava submersa. Descreve como ela consegue apesar do intenso sofrimento e vivências dolorosas, emergir mais integrada e mais em um contato verdadeiro consigo mesma. Diferentemente de Winnicott, ela deixa vastas estradas abertas para podermos acessar sua vida privada, sua história e sua vida emocional. Sem pudor, ela em vários momentos escreve e nos relata sua luta, suas influências e suas buscas, como nesse pequeno trecho do livro A life of One’s Own, quando podemos sentir sua dor e seu desespero: “Intenções superficiais se acumulavam em um fardo de metas não alcançáveis, de modo que segui minha trilha com o peso do fracasso apesar de “ambicionar sempre querer fazer” algo mais”. [2]
Em 1927, Marion Blackett casa-se com Dennis Milner e então passa a assinar todos os seus trabalhos e livros como Marion Milner, tal como a conhecemos. Interessante notar que Marion nunca publicou um livro com seu nome de família. Primeiro usa o pseudônimo Joanna Field e depois, como ficou mais conhecida, seu nome de casada. Não sei se isso teria algum significado que pudesse interessar, mas chamou minha atenção ela retirar o nome de sua família de origem, talvez por representar uma tradição excessivamente pesada para se carregar. De qualquer forma, fica a observação, ainda que o comentário seja puramente especulativo.
A jovem recém-casada ganha uma bolsa de estudos e vai com o marido para os Estados Unidos estudar com Elton Mayo. Além dos estudos, o casal vive um período de intensas aventuras viajando da costa leste para oeste em um carro velho e ficando em acampamentos precários, mas as cartas que ela envia para Inglaterra falam de momentos de enorme felicidade e prazer. Durante sua estada na América, entra em contato com os livros de Freud, especialmente a Interpretação dos sonhos. Segundo alguns relatos, seu irmão Patrick lhe teria dado o primeiro livro sobre Psicanálise, mas seu interesse é efetivamente despertado nesse curso que faz com Elton Mayo. Também nos Estados Unidos tem a primeira experiência com um processo psicanalítico, que durou pouco tempo.
Volta para Londres. Em 1931, descobre que está grávida e, em janeiro de 1932, nasce seu filho John.
Em 1937, publica o livro An Experiment in Leisure. (Uma experiência com o Ócio). Em 1939, a nossa personagem começa a trilhar a estrada psicanalítica. Em 1940, é aceita para Sociedade Britânica de Psicanálise; e, em 1948, é apresentada ao grupo de Bloomsbury por seu irmão Patrick, que foi uma forte influência em sua infância. O irmão com quem descobriu a possibilidade de compartilhar brincadeiras. E, certamente, o orgulho da família, pois nesse mesmo ano ele ganhou o Prêmio Nobel de Física. Em 1950 publica o livro — On Not Being Able to Paint —pela primeira vez.
Quando passou a pertencer à Sociedade de Psicanálise, Marion nada sabia sobre as intrigas e distensões entre Anna Freud e Melanie Klein, mas escolhe para seu analista um membro do futuro Grupo Independente. Ela se filiou a esse grupo e é considerada uma das suas fundadoras. Logo conheceu Donald W. Winnicott e desenvolveram uma importante interlocução. Como diz Masud Khan, “ela soube aplicar a teoria winnicottiana como ninguém, porém sem nunca deixar de ser ela mesma.” E ainda escreve:
Alguém disse que genialidade é energia. Marion Milner tem uma energia exaustiva para viver, trabalhar, escrever e pintar. O único outro analista que tenha conhecido, que possuía estas qualidades, de alguma maneira em grande medida, foi Winnicott, … [3]
Para poder entender de forma mais aprofundada o pensamento e as contribuições teóricas dessa grande pensadora, ver os cursos oferecidos pela Academia Prosopon com aulas ministradas pelo prof. Dr. Gilberto Safra que vão nos oferecer um denso tecido de seu legado.
[1] LETLEY, Emma- MARION MILNER: The Life. London: Routledge, 2014.
[2] MILNER, M. – A life of one’s own. London: Routledge, 2011 (p. 94- tradução minha)
[3] KHAN, MASUD- Genius is energy. Uma resenha sobre o livro The Suppressed Madness of Sane Men. Em publicação: Winnicott Studies. The Journal of the Squiggle Foundation. A Celebration of the Life and Work of Marion Milner. Londres: 1988, p. 56
Respostas de 2
adore ver o esse texto tão singelo e muito simples publicado. Vou tentar, mais para frente, encaminhar um texto fazendo uma leitura mais aprofundada e que contemple verdadeiramente a obra dessa Psicanalista com letra maiúscula.
Ana Cristina Gomes Bueno
Ana Cristina, seu texto é um delicioso convite para conhecer a obra de Marion Milner!! Sinto-me convidada…