Recentemente, em uma aula, instiguei os alunos a pensarem sobre o título aparentemente enigmático de um livro de Gilberto Safra (2006) intitulado “Desvelando a memória do humano”. A conversa que tivemos produziu muitas reflexões – algumas das quais gostaria de compartilhar aqui.
Usualmente, pensamos o termo “memória” associado a algum evento ocorrido na vida de uma pessoa; ou seja, estamos acostumados a pensar a memória em seu registro ôntico, factual, empírico, biográfico. No entanto, Safra propõe no livro mencionado que consideremos “memória” em seu registro ontológico, em relação ao que tange o próprio ser do Homem. Aqui, recuperar a memória do humano é exercitar a lembrança sobre os fundamentos que nos constituem, sobre o que permite nosso advento, nosso acontecimento, nossa morada no mundo. Ao procurar recuperar a memória sobre as necessidades ético-ontológicas do ser humano, Safra está apontando para o fato de vivermos em um mundo “esquecido”, em um mundo que está constantemente se distraindo e, assim, não está dando a devida atenção àquilo que mais nos diz respeito e de que mais necessitamos.
É frequente encontrarmos nos textos e aulas de Gilberto Safra uma preocupação em assinalar as condições sob as quais vivemos na atualidade (podemos compreender esse olhar como uma ampliação das contribuições que Winnicott fez à psicanálise de sua época a respeito do qual vital é se ter em vista a implicação entre a constituição de uma pessoa e seu ambiente). Para ele, as organizações éticas e estéticas da Cultura e do Mundo dizem respeito a uma faceta fundamental daquilo que compreendemos por “ambiente” – mas que por estarmos tão imersos em suas qualidades, não temos consciência do quanto por ela somos afetados. Termos como “desenraizamento”, “desalojamento”, “falta de pertencimento”, “não-aparentamento”, “fratura ética”, “aviltamento do ethos humano”, entre outros, comparecem no vocabulário desse autor justamente quando aborda os efeitos que as organizações temporais, rítmicas e relacionais do Mundo atual têm nos provocado.
Desvelar a memória do humano seria uma tentativa de redesenhar o rosto humano – aliás, atividade muito cara a Gilberto Safra, quem há alguns anos tem se dedicado a “escrever” (pintar) ícones, rostos de pessoas. Redesenhar o rosto humano, ou reencontrar o rosto humano – desfigurado por tantas abstrações – é uma atividade ética a ser constantemente realizada pela clínica na atualidade; pois, sem termos clareza de qual nosso rosto, de quem somos, do que mais necessitamos, não é possível oferecer o devido auxilio àqueles que procuram ajuda psicoterápica, uma vez que não teríamos uma bússola precisa a fim de nos apontar para um devir condizente à estatura humana. Dessa forma, desvelar a memória do humano é também apresentar quais as necessidades éticas mais fundamentais que nos constituem, é apresentar em que consiste nosso ethos – aquilo que nos permite existir enquanto humanos e habitar o mundo, ter um lugar entre o Outro – não apenas entre alteridades humanas, mas entre a Natureza, nossos Ancestrais, a Cultura, o Mistério que nos rodeia, o Absoluto que nos atravessa.
Assim, surgem ao longo de sua obra termos como “hospitalidade”, “lugar”, “presença”, “companhia”, “solidariedade”; e, mais especificamente, no livro acima citado, algumas expressões como “o brincar”, “o narrar”, “o corpo”, “o sagrado”, “o silêncio” – todas elas subtítulos do livro e também demandas éticas fundamentais, às quais ele irá examinar em profundidade ao longo de sua escrita, e que apontarão para uma lembrança a respeito da origem, da travessia e do devir humanos.