Trabalhei como psicóloga em um grande hospital psiquiátrico por 20 anos, e lá utilizei-me de fotografias como instrumentos de intervenção terapêutica; as pessoas que acompanhei eram, em sua maioria, mulheres que viviam em profundo sofrimento psíquico (quadros psicóticos graves) e estavam internadas naquela instituição havia muitos anos[1].
Vivíamos na era da fotografia analógica, o que significava que a cada clique tínhamos um tempo a esperar até que o retrato chegasse às mãos das pacientes e pudéssemos, então, utilizá-los nas intervenções. O tempo era um fator imprescindível – tanto para a revelação dos filmes, quanto para a ampliação das fotos em papel – e esperar (o tempo) podia, muitas vezes, gerar expectativa e apreensão. Estávamos, assim, no tempo da fotografia, e não no tempo de imagens quase instantâneas que smartphones e câmeras digitais conseguem fazer atualmente.
A importância da fotografia naquele trabalho foi se revelando aos poucos: a cada registro de um passeio que fazíamos nas redondezas do hospital, ou mesmo na nossa rotina dentro dele. Percebi que fotografias contavam histórias e ficavam em nossa memória – na das pacientes e na minha.
Pouco tempo após meu desligamento da instituição, o mundo mudou em uma velocidade inimaginável até então. O universo analógico praticamente deixou de existir e o mundo instantâneo nos levou para uma relação complexa com o tempo. Deixamos de esperar. Em poucos minutos conseguimos fazer dezenas de imagens e tê-las na palma das mãos; e conseguimos modificá-las ou descartá-las com a mesma rapidez (para os mais jovens, diga-se de passagem, essa tarefa é extremamente fácil…).
A delicada tessitura para se contar uma história parece, hoje, distante; não conseguimos esperar. Essa rápida reflexão leva-me a uma passagem de Gilberto Safra (1999, p. 54), que está em seu livro “A face estética do self”:
O tempo assim concebido é um dos elementos fundamentais para a nossa apreensão da realidade compartilhada, algo que vamos encontrar na literatura psicanalítica conceituado como ‘processos secundários’. É um sentido de tempo que organiza as experiências vividas pelo indivíduo ao longo da sua vida, dando a ele uma representação de si mesmo, como alguém que tem uma história, que pode ser narrada, datada e significada pelas medidas temporais convencionadas.
A realidade compartilhada, mencionada pelo autor, foi profundamente vislumbrada no trabalho que realizei com aquelas pacientes que estavam à espera de um encontro mediado pelas fotografias. Pensando sobre o tema e a importância da espera, observo, hoje, jovens ágeis em relação ao uso da tecnologia e que são capazes de produzir lindas imagens com seus smartphones; mas a instantaneidade dessa ação leva-me a considerar cada vez mais a necessidade de uma reconexão com as coisas e com o tempo que vai em outro ritmo – quando conseguimos olhar para.
Rosângela Andrade, laboratorista e fundadora do “Clube do Analógico”, em São Paulo, trouxe-me uma informação surpreendente: muitos jovens têm buscado aprender fotografia analógica. Diante de minha surpresa com essa revelação, ela acrescentou, ainda, que alguns alegam a necessidade de “sair da tela”, de fazer as coisas com tempo ou em outro tempo. A técnica da fotografia analógica exige um ritmo diferente: com as mãos revela-se o filme que, depois de secar, vai para o ampliador; na sequência, coloca-se o papel nas banheiras com os químicos e, só então, aguardamos o que virá. Temos que esperar para que o processo aconteça.
Quiçá a redescoberta da fotografia analógica por jovens cansados de uma vida instantânea possa contribuir para o retorno a um tempo em que histórias possam ser reveladas, compartilhadas e guardadas na memória. E que esse seja um retorno ao tempo da delicadeza!
Respostas de 6
Delicado, sério e de uma profundidade pouco vista. Parabéns Margarida
Margarida já foi um lindo trabalho na época de seu doutorado e na atualidade ganha uma importância fundamental para encontrarmos o tempo da delicadeza
Sou apaixonada pela foto analógica! Adorei ler seu artigo.
Margarida escreveu uma tese e um livro extraordinários. Ela empresta seu olhar para que o outro se olhe e que nós possamos olha-lhos e também, por causa disso, olharmos mais atentos para nós mesmos. Definitivamente não se trata de instantaneidades, mas aprender com ela cuidado e artesania. Que este texto seja um convite para que o livro Cartas e Retratos passa ser lido, pensado, usufruído.
Parabéns, Academia. É com alegria que faço parte de grupo.
Que bonito!
Em busca de achar o tempo que ainda não está perdido, encontro no texto da querida Margarida algo que se revela como vocação e ética. No ato de fotografar e registrar imagens que permaneçam para além do momento, uma delicada escolha e uma tarefa que se desdobra em cuidados e afetos. Olhos e coração conjugados. Obrigada, Margarida!