Academia Prosopon

Quando o “eu” experimenta ser “nós”
Um sentido interno para o presente de Natal

É simbolicamente bastante interessante a data do Natal coincidir com o desfecho do ano, com o encerramento de um ciclo. O Natal é celebrado por se tratar de um momento de nascimento; no entanto, para que algo novo e promissor possa surgir, um espaço precisa ser concedido – o que se dá por meio da aceitação do fim daquilo que é sentido como obsoleto ou, até mesmo, prejudicial. Assim, o Natal é, antes de mais nada, um momento que demanda a experiência simbólica de morte. E o que deve morrer neste contexto?

O texto de Charles Dickens, “Um conto de Natal”, é um material a que se faz muita referência nesse momento do ano, aparecendo em diversos espaços culturais nas formas de peça teatral, de leitura pública e de apresentação de cinema. Ebeneezer Scrooge é o protagonista desta história, um senhor amargo, avarento e solitário; ele se encontra nessa situação devido a escolhas que fez em seu passado, e que são sustentadas em pequenas ações de seu cotidiano. A Scrooge é oferecido um presente de Natal, que consiste na visita de três espíritos – do Passado, do Presente e do Futuro – que lhe revelarão verdades sobre si, verdades que ele ou defensivamente ignora a fim de manter-se em um estado de comodismo psicológico, ou que ele realmente desconhece, porque estão para além de suas capacidades cognitivas. A intenção dessas visitas é oferecer ao pobre homem (pobre de espírito, porque materialmente é muito rico) uma oportunidade: a revisão de sua postura existencial – o abandono de seu egoísmo, de seu apego material, e a formação de uma posição mais solidária, compassiva e altruísta; assim, a ele é dada a chance de ampliar sua identidade: ao invés de permanecer assentado em seu pequeno, defendido e assustado “eu”, poder vir a estar no mundo a partir de uma maior abertura ao outro. Dito de outra forma, as visitas que ele recebe procuram ajudá-lo a fazer com que seu “eu” venha a experimentar ser um “nós”, ou, a partir de uma linguagem que me apraz, e que procurarei esclarecer ao longo do texto, visam auxiliá-lo a deixar de ser um indivíduo para se tornar uma pessoa.

O eu (ego), para a psicanálise, é uma estrutura extremamente importante para a constituição de um ser humano; sem ela não é possível organizar-se tanto internamente quanto em termos de tempo e espaço, e tampouco iniciar uma jornada que vai de uma percepção da realidade extremamente subjetiva (marcas do início de nossas vidas) para uma relação mais objetiva com a realidade, com o outro. O ego é sempre um ego corporal, que se constitui a partir da intimidade de formamos com nosso corpo, sendo, portanto, um centro de consciência que permite situar-nos no mundo, diante dos objetos, e a fazer uma delimitação entre o que consideramos ser um “dentro” e um “fora” de nós mesmos. O ego também surge a partir da necessidade de nos protegermos de eventos externos e internos (vida instintiva) que possam desequilibrar nossa homeostase. Assim, aquilo que chamamos de “eu” é, por natureza, uma estrutura organizadora e defensiva.

Fiquei admirado no dia em que descobri que o ideograma chinês por meio do qual se representa a palavra “eu” é 我 (wo), e que carrega em si a imagem de uma mão (手) segurando uma lança (戈) (Wieger, 1965). É sabido que muitos ideogramas chineses têm uma origem pictórica; ou seja, muitos deles nasceram da tentativa de se reproduzir imagens referentes a objetos concretos. Wo é um desses, por meio do qual se pode traçar seu passado. Segundo alguns etimólogos (Wilder; Ingram, 1974, p. 2), esse ideograma também pode estar representando duas lanças, o que dá a ideia de um conflito, de uma luta; mais especificamente, uma luta por direitos, por espaço: “duas armas em conflito, dois direitos que se opõem, o meu direito e, por extensão, o meu Ego, a minha própria individualidade, eu”.

Dessa forma, por várias vias, entende-se que o “eu” diz respeito a uma estrutura defensiva; mas é necessário que fique claro que tal fato, em si, não é um problema. No entanto – e aí sim nosso problema se inicia – essa estrutura egóica pode adoecer, o que significa que ela pode vir a ter um funcionamento distinto do previsto, a estabelecer uma “agenda própria” e a utilizar-se da energia da pessoa como um todo para sustentar circuitos fechados, ou seja, sustentar medos, inseguranças, ansiedades; pode vir, até mesmo, a empregar a energia psíquica disponível a fim de valorizar-se de maneira exacerbada, e um culto a si passa a se configurar como parte da existência da personalidade (toda a questão do narcisismo discutido na contemporaneidade está ligada a isso). Assim, o eu adoecido é um eu extremamente defendido – defendido contra o outro, defendido contra a possibilidade de ter que lidar com dores e desorganizações que já experimentara no passado e que lhe demandaram muito trabalho. Winnicott (1970a, p. 77), em seu texto “A dependência nos cuidados infantis”, traz uma imagem que descreve bem essa situação:

uma certa proporção de bebês experimentou falhas ambientais quando a dependência era um fato; neste caso, em graus variados, houve um prejuízo concreto, que pode ser muito difícil de reparar. Na melhor das hipóteses, o bebê que está se tornando uma criança ou um adulto leva consigo a memória latente de um desastre ocorrido com o seu eu, e muito tempo e energia são gastos em organizar a vida de tal forma que esta dor não volte a ser experimentada […] numa grande proporção de casos, os bebês não passam por este tipo de sofrimento, e sobrevivem sem que lhes seja necessário gastar tempo e energia construindo uma fortaleza ao redor de si para manter afastado um inimigo que, na verdade, se encontra no interior das paredes desta fortaleza.

Aqui está sendo apontada a formação de um “eu-fortaleza”, uma entidade egóica (entidade, pois que se manifesta com “vida própria” e apartada da totalidade), que certamente será muito disfuncional em sua ação. Na compreensão que estou formulando, é esse eu adoecido que deve morrer, ou melhor, ser curado – e o Natal parece ser o momento escolhido pela cultura para que isso possa acontecer; ou seja, é essa morte o grande presente natalino. Quando esse eu adoecido é transformado pelas visitas que recebe – símbolo da alteridade – o ser humano tem a oportunidade de fazer uma transição de indivíduo para pessoa.

Compreendo o indivíduo como uma mônada, uma entidade fechada que acredita em sua autossuficiência, e que por esse motivo não se coloca em disponibilidade para uma troca formativa com o outro. O indivíduo quer a si mesmo. Décio Pignatari (1960), poeta concretista brasileiro fez um poema que, a meu ver, apresenta bem o tipo de funcionamento e de intencionalidade característico do que entendo ser aquele do “indivíduo”. O poema chama-se “Organismo”:

Em sua vocação originária, o Natal, por meio de seus dispositivos sociais, do enlace comunitário que promove, de suas narrativas, procura auxiliar o ser humano a sair desse funcionamento e a se abrir para o outro, para o desconhecido, para o inédito, a fim de que seja transformado – a fim de que um “eu” experimente ser “nós”. Ser “nós” é justamente o que caracteriza a “pessoa”, tal como eu compreendo essa concepção antropológica.

A origem da palavra pessoa remonta ao termo grego prosopon (πρόσωπον), que tem sua etimologia atrelada à imagem de dois olhos – a parte mais expressiva do rosto humano. Essa imagem possibilitou que o termo fosse utilizado pela cultura helênica a fim de nomear a vestimenta mais importante de um ator, a máscara. Tal objeto permitia àquele que vivia a experiência do Teatro esquecer-se das determinações que o Cosmos lhe impunha: por alguns instantes, o ator era suspenso de sua pesada realidade, podendo vivenciar uma existência que não era a sua própria, e experimentar, assim, uma sensação – ainda que fugaz – de liberdade (Zizioulas, 1991).

Alguns teólogos cristãos que viveram na região Capadócia, no século IV (São Basílio, São Gregório de Nissa e São Gregório Nazianzo), passaram a conferir um novo sentido ao termo prosopon: ao invés de estar atrelado a uma experiência de falseamento de si (máscara), prosopon passa a ser compreendido como “rosto” – um rosto que revela a presença de um outro, que é, portanto, “ícone” (εἰκών, eikon), janela de acesso a uma alteridade.

São Gregório, nascido em Nissa, irá afirmar que Jesus foi alguém que se fez pessoa, uma vez que devotou sua existência a permitir que o Pai fosse conhecido, por meio de si. Ele teria se feito ícone do Pai; ou seja, teria se despojado do próprio rosto, a fim de que o rosto de um outro pudesse ser vislumbrado; e, ao fazê-lo, realizou sua própria vocação. Aqui se encontra um dos grandes paradoxos dessa teologia: eu me faço mais eu mesmo, mais me torno eu mesmo, quanto mais deixo um outro se expressar por meio de mim, conscientemente, e por meio do amor.

São Gregório se baseia em algumas passagens do Evangelho para dar a conhecer esse modo de existência divino; duas delas seriam as seguintes, proferidas por Jesus: “Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o conheceis, e o tendes visto (Jo 14:7)”; ou, “Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Como ouço, assim julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou” (Jo 5:30). A partir de passagens como essas, o teólogo capadócio conclui que “o Filho é o meio pelo qual o Pai nos é conhecido” (Lynch, 1979, p. 731).

Assim, compreende-se que Jesus teria sido alguém que pôde expressar sua existência como um “nós”, e que por isso ele seria o grande representante do Natal e o convidado de honra a nos visitar – o outro que teria o potencial de nos retirar da infeliz condição de indivíduos, já que da morte do indivíduo surge a possibilidade do nascimento da pessoa.

Para muitos, o Natal não deveria ser celebrado como um evento externo a si ou como um nascimento histórico (do pequeno Jesus, filho de Maria). Mestre Eckahrt, filósofo e teólogo místico medieval, por exemplo, irá dizer nesse sentido, em seu sermão de Natal: “De que adiantaria que este nascimento ocorresse sempre se não fosse para ser realizado dentro de mim? Que isto ocorra dentro de mim é o que me interessa” (primeiro sermão, p. 2). Mas para que esse evento ocorra, também diz Eckhart, é necessário que os excessos do “eu” cedam espaço para a entrada do outro; ou seja, é necessário se criar um vazio na própria interioridade, para que ela mesma se torne a manjedoura onde o nascimento se dará: “no fundamento da alma se encontra o silencioso meio, ali nada existe senão o repouso e a celebração desse nascimento” (idem). O nascimento demanda silêncio, vazio, ou seja, a realização de uma morte simbólica.

Winnicott (1984g, p. 276), em uma de suas últimas palestras (“Cuidados Residenciais como terapia”, 1970), inicia sua fala com a seguinte ideia: “Há muito crescimento que é crescimento para baixo. Se eu viver por tempo suficiente, espero encolher e me tornar pequeno o suficiente para passar pelo buraquinho chamado morrer”. O assinalamento de Winnicott aponta para a necessidade de que morramos antes de morrer, ou seja, que possamos exercitar uma morte simbólica do eu constantemente, a fim de que a morte concreta seja, de fato, um descanso.

Assim, espero que esse sentido de Natal ecoe em sua interioridade e lhe conceda silêncio e conforto diante do vazio, para que seu futuro seja repleto de novos nascimentos. E que nossa aposta seja a de que após cada morte uma nova manifestação de vida, mais interessante, surja:

 

Em verdade, em verdade vos asseguro que

se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, permanecerá ele só;

mas se morrer produzirá muito fruto

(João 12:24).

 

Referências bibliográficas:

Bíblia. Retirado de: https://bibliaportugues.com/john/12-24.htm

Dickens, C. (1843). Um conto de Natal. Coleção L&PM Pocket, 2003.

Eckhart. Sermões alemães completos. Retirado de: https://caminhodomeio.files.wordpress.com/2009/06/meister-eckhart-os-sermoes-alemaes.pdf

Lynch, J. J. (1979). Prosōpon in Gregory of Nyssa: A Theological Word in Transition. Theological studies, v. 40, n. 4, p. 728-738.

https://doi.org/10.1177/004056397904000405

Pignatari, D. (1960). Retirado de: https://antologia.litelat.net/obra-55

Wieger, L. (1965) Chinese Characters. Dover.

Wilder, G. D.; Ingram, J. H. (1974). Analysis of chinese characters. Dover.

Winnicott, D. W. (1970a). A dependência nos cuidados infantis. Em: Os bebês e suas mães. Martins Fontes, 2002.

Winnicott, D. W. (1984a). Privação e delinquência. Ubu, 2023

Zizioulas, J. (1991). Being as communion: Studies in Personhood and the Church. St Vladimirs Seminary.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *