Psicóloga e Psicanalista experiente com profundo conhecimento literário, Nícia Maria Lira Gomes nos presenteia com um diálogo entre Machado de Assis e Pavel Florensky.
Seu artigo permeado por verdades e ternura, reflete a postura de quem concebe bem o saber, e por essa razão expressa-o com a clareza e a singeleza que uma criança também poderia compreender.
Quanto valor há nesse processo!
Ana Maria Seraidarian Najjar
É sempre uma ousadia analisarmos nossos mestres do caminho de conhecimento e do saber. E Machado é um deles.
Nesta galeria de gigantes, incluímos com muita reverência Pavel Florenski. Há uma consonância, um diálogo entre eles. No conto acima citado encontramos muitas marcas desta interação, especialmente no conceito da Verdade.
O conto inicia com um diálogo entre uma agulha e uma linha, onde a busca pela primazia e importância são a tônica.
“Era uma vez uma agulha que disse a um novelo de linha:
– Por que você está com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada para fingir que vale alguma coisa nesse mundo?
…- Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com sua vida e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites da nossa ama quem é que os cose, senão eu?
-… Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados…”
O embate continua nesse tom, até que a costureira, pegou o tecido, a agulha e a linha e iniciou a costura. Até terminar a obra.
Neste pequeno trecho o que vemos na realidade é como ambas não conhecem a experiência de viver em comunhão uma com a outra. Aquilo que Florenski fala que as pessoas se juntam para ampliar o conhecimento humano.
A agulha e a linha podem nos dar um exemplo de como a Verdade pode acontecer em todos os reinos, quer humano, quer vegetal, quer mineral.
Se quisermos transpor este acontecimento para as relações humanas, nos deparamos com a impossibilidade da troca, do envolvimento com o outro.
Só quando abdico de mim mesmo e que posso alcançar a Verdade, conhecer na diversidade; no unitário temos o comunitário.
Ora, o que vemos neste texto? Cada qual tentando com sua arrogância sentindo-se acima de toda realidade.
“… Eu é que furo o pano, vou adiante puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que faço e mando…
– Também os batedores vão adiante do imperador…”
As duas não se dão conta da interdependência que se dá nesse processo. Se auto-idolatram, negam a multiplicidade da Verdade.
Vemos que nenhuma delas se permite a hospitalidade; para cada uma o isolamento é a consequência natural.
Ao final, diz a linha: “Ora, agora diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido…?
Parece que a agulha não disse nada, mas um alfinete, de cabeça grande, murmurou à pobre agulha: … faze como eu, que não abro caminho para ninguém, onde me espetam, fico.”
Desaparece a Verdade com letra maiúscula, como diria Florenski. Aquela que transcende o tempo e o espaço. Ela nos mostra o campo do Absoluto: é o total do trabalho de ambas que resulta na confecção do vestido e no ato de ir ao baile…
Quantas vezes nas relações humanas o homem não consegue se abrir incondicionalmente, não consegue atravessar a multiplicidade da realidade. Acontece então uma realidade falsa, uma criação, pois sabemos da necessidade dos dois elementos na confecção da costura. Temos um circuito narcísico, que nega a outra, a sua presença.
Tal como o alfinete, onde o isolamento, a falta de dinâmica nas relações, da reciprocidade sensorial, a paralisação. Com isso, a desilusão do professor ao final do conto: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”
Como diria Florenski: não havendo renúncia de si, a multiplicidade do outro, para além do tempo e do espaço, a verdadeira relação, não acontece.
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Referência: Machado de Assis – Contos: Um Apólogo. Ed, Aguilar, primeira edição (páginas 537-538).
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Nícia Maria Lira Gomes e Psicóloga, Psicanalista, formada pela Universidade Católica de Pernambuco. Exerce sua clínica particular na cidade de São Paulo.
Uma resposta
Ver Nícia apresentar a literatura e a psicanálise como conhecimentos complementares nos emociona e nos dá um sentimento de gratidão.
Neste conto, Machado de Assis apresenta o problema da arrogância e da ignorância humana . A agulha e a linha, presas em sua cegueira, não conseguem perceber que é apenas graças à seu trabalho em conjunto que o vestido é construído. Para completar a obra, é necessário que trabalhem juntas. A ignorância, como diz a Nícia, é não conhecer “a experiência de viver em comunhão”.
Pavel Florenski, em contraponto, apresenta um caminho para a resolução ao falar sobre como as pessoas se juntam para ampliar o conhecimento humano, esse seria o caminho para chegar à Verdade “que transcende o tempo e o espaço”.
Tanto a literatura, quanto a psicanálise tentam derrubar esse tirano que habita dentro de nós e que se torna um perigo para sociedade: a ignorância.