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Sándor Ferenczi e a emergência do campo intersubjetivo na clínica psicanalítica

A fim de estabelecer bases metodológicas consistentes e conferir legitimidade científica para a modalidade de prática clínica que estava desenvolvendo, Freud delimitou contornos éticos e técnicos bastante precisos para seu ofício. Um deles foi a assim chamada “regra de abstinência”, apresentada em seu texto “Observações sobre o amor de transferência” (Freud, 1915), e que consiste na recusa por parte do analista em satisfazer os anseios afetivos do paciente que são dirigidos ao jogo transferencial. Freud formula no texto mencionado a justificativa para tal conduta por meio da compreensão de que se faz necessário “deixar que a necessidade e o anseio continuem a existir, no paciente, como forças impulsionadoras do trabalho e da mudança” (Freud, 1915/2010, p. 218). Essa postura de neutralidade não-participativa visava, ainda, poupar o próprio analista de possíveis embaraços contratransferenciais (confusões sentimentais), bem como do gozo narcísico que eventualmente poderia obter ao ver-se um grande influenciador do destino de seus analisandos; por outro lado, também evitaria que o paciente usasse a dimensão transferencial de maneira dispersiva, já que Freud constatara em sua experiência clínica que o paciente, “que deveria não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolve especial interesse pela pessoa do médico” (1916/1990, p. 103). Por fim, o princípio de abstinência (ou “de frustração”) contribuiria para que o objetivo maior da investigação psicanalítica alcançasse seu êxito: o contato do paciente com a dinâmica de seu inconsciente; ou melhor, o estabelecimento de uma mais fluida comunicação intrapsíquica (entre as instâncias id, ego, superego).

Ainda que bem intencionado e adequado para muitos analisandos, esse princípio também trouxe alguns impasses clínicos importantes para as décadas de vinte e trinta do século passado. Braço direito do fundador da psicanálise por muitos anos, o médico húngaro Sándor Ferenczi foi um porta voz de tais impasses; em seus últimos escritos, momento no qual já havia se diferenciado, em muito, do pensamento de seu mestre, analista e amigo, Sigmund Freud, Ferenczi reconhecerá e explicitará o incomodo de alguns de seus pacientes em relação à dinâmica relacional configurada pelo princípio de abstinência afetiva: “Você não acredita em mim! Não leva a sério o que lhe estou comunicando! Não posso admitir que fique aí sentado, insensível e indiferente, enquanto me esforço por imaginar algo trágico da minha infância!” (Ferenczi, 1932/2003, p. 31). Assim, Ferenczi (1932/2003, p. 224) irá se autocriticar e criticar a seus colegas a respeito do efeito negativo que suas posturas distantes e até mesmo caricaturais poderiam facilmente gerar nos pacientes:

A maneira como a psicanálise age na relação entre médico e paciente deve causar neste último o efeito de uma crueldade deliberada. Acolhemos o paciente com amabilidade, procuramos assegurar a transferência e, enquanto o paciente se atormenta, fumamos tranquilamente nosso charuto numa poltrona, fazemos num tom entediado observações convencionais que produzem o efeito de frases feitas e, ocasionalmente, tiramos um cochilo. No melhor dos casos, fazemos esforços enormes para vencer os bocejos de tédio e para nos mostrarmos amáveis e compassivos.

Uma das preocupações de Ferenczi nos últimos anos de sua carreira foi a de tentar não fazer da dinâmica transferencial uma reedição do ambiente que fora traumático para os pacientes; pois, algo que percebe ocorrer com alguns deles é que estando diante do analista neutro e passivo se sentiam profundamente solitários e abandonados por seu novo cuidador, tal como ocorrera em suas infâncias: “Se, na situação analítica, o paciente sente-se ferido, decepcionado, abandonado, põe-se às vezes a brincar sozinho, como uma criança desprezada” (Ferenczi, 1931/1992, p. 88). Tendo essas considerações em vista, o psicanalista húngaro chamará a atenção de seus colegas para o fato de que aquilo que era uma postura tida como ética pela psicanálise – o princípio de abstinência – poderia ser recebida pelo paciente como uma nova violência traumática, um modo de relação que apenas produziria “clivagem narcísica”, ou seja, um fortalecimento da defesa dissociativa e um retraimento de qualidade patológica. Vejamos a conclusão à qual ele chega para esse impasse:

Nesses casos de diminuição do prazer de viver, vi-me pouco a pouco na obrigação de reduzir cada vez mais as exigências quanto à capacidade de trabalho dos pacientes. Finalmente, impôs-se uma situação que só pode ser assim descrita: deve-se deixar, durante algum tempo, o paciente agir como uma criança […] Por esse laisser-faire permite-se a tais pacientes desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo. Somente mais tarde é que se pode abordar, com prudência, essas exigências de frustração, que, por outro lado, caracterizam as nossas análises (Ferenczi, 1929/1992, p. 60).

Ao relaxarem na presença do analista acolhedor, o passado desses analisandos era reconstruído por meio de uma revivicação traumática (“neocatarse”). O relaxamento produzido pela postura empática do analista permitia aos pacientes se entregarem a um regresso às suas angústias mais primitivas, chegando, até mesmo, a atuarem situações vividas em um passado remoto, inclusive, a apresentarem ao analista, plasticamente, reações corporais que eles sofreram na época do trauma. O grande crédito que Ferenczi encontrava nesse “princípio do relaxamento” estava em favorecer o contato do paciente com a dimensão afetiva – já há muito tempo soterrada pela tendência intelectualista com que as análises vinham ocorrendo. Por meio de uma experiência viva, paciente e analista tinham a oportunidade de sentirem juntos os efeitos do abandono traumático, e virem a conhecer corporal e afetivamente as angústias que sustentavam a produção sintomática; podendo, então, após terem tocado a realidade do sofrimento, reunirem esforços a fim de que a elaboração simbólica do ocorrido fosse alcançada.

Ao seguir este novo caminho, Ferenczi faz a psicanálise migrar de uma proposta de investigação fundamentalmente intrapsíquica para uma experiência intersubjetiva; e, ainda mais, a retira de uma proposta que corria sérios riscos de ser um evento solipsista para, finalmente, tornar-se um encontro. A meu ver, essas contribuições inovadoras, ainda que temerárias, se enquadram dentro da terminologia que o epistemólogo português Boaventura Sousa Santos utiliza para se referir a uma nova modalidade de conhecimento sob o nome de “paradigma emergente” das ciências. Ao contrário do “paradigma dominante”, que insiste em manter sujeito e objeto categorias estanques no ato de produção de conhecimento, o novo paradigma aposta na troca real, e reconhece que a via fértil para o acesso ao saber está na dimensão do “entre”. Eis alguns dos efeitos desta nova perspectiva – que certamente gera riscos e novas responsabilidades no ato de produção de conhecimento, mas um enorme alívio para seus participantes:

Hoje sabemos ou suspeitamos que as nossas trajectórias de vida pessoais e colectivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio. No entanto, este saber, suspeitado ou insuspeitado, corre hoje subterraneamente, clandestinamente, nos não ditos dos nossos trabalhos científicos. No paradigma emergente, o carácter auto-biográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido. (Santos, 1995, p. 85)

Talvez sejam essas contribuições de Ferenczi ao campo psicanalítico que o fazem um dos personagens mais aclamados do cenário contemporâneo – momento histórico que demanda, antes de mais nada, transparência, implicação ética, presença humana real, mutualidade e horizontalidade relacional.

Alguns momentos nos quais Gilberto Safra abordou a contribuição de Sándor Ferenczi foram em seu curso intitulado “Transferência: A evolução do conceito” (curso completo), realizado em 2011, no qual dedica a primeira aula ao psicanalista húngaro – “Sandor Ferenczi. O lugar dos Afetos e da Introjeção”; e na primeira aula do curso “Contratransferência”, realizado em 2012, cuja segunda aula conta com o título “Ferenczi e Otto Rank contribuições à técnica psicanalítica”.

 

Referências:
Freud, S. (1915/2010). Observações sobre o amor de transferência. In: Observações sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre a técnica e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. (1916/1990) Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXVII: Transferência. Em: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud, vol. XVI. Rio de Janeiro: Imago.
Ferenczi, S. (1929/1992). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. Em: obras completas. Psicanálise IV. Martins Fontes.
Ferenczi, S. (1931/1992) Análises de Crianças com Adultos. Em: obras completas. Psicanálise IV. Martins Fontes.
Ferenczi, S. (1932/2003). Diário Clínico. Martins Fontes.
Santos, B. S. (1995) Um discurso sobre as Ciências. Afrontamento.

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