Academia Prosopon

Conhecer é Reconhecer

Gilberto Safra, ainda muito jovem, encantou-se com uma música frequentemente tocada na casa de seus pais e avós (o avô paterno era de origem espanhola). Essa música chama-se “AQUELLAS PEQUEÑAS COSAS”. Foi composta e cantada por Joan Manuel Serrat: cantor, poeta, músico e compositor espanhol. Profundamente sensibilizado, elegeu-a como uma de suas canções prediletas. Jamais a esqueceu.

A partir da letra abaixo descrita, farei algumas reflexões:

Uno se cree
Que las mató el tiempo y la ausencia
Pero su tren
Vendió boleto
De ida y vuelta

Son aquellas pequeñas cosas
Que nos dejó un tiempo de rosas
En un rincón
En un papel
O en un cajón

Como un ladrón
Te acechan detrás
De la puerta
Te tienen tan
A su merced
Como hojas muertas

Que el viento arrastra allá o aquí
Que te sonríen tristes y
Nos hacen que
Lloremos cuando
Nadie nos ve

Você pensa
Que o tempo e a ausência acabaram com tudo
Mas esse trem
Tinha passagem de ida e volta

São aquelas pequenas coisas
Que nos deixou um tempo de rosas
Num cantinho, num papel
Ou numa gaveta

Como um ladrão
Elas te observam atrás da porta
Você está tão à mercê delas
Como folhas mortas

Que o vento arrasta lá ou aqui
Que sorriem tristes para você e
Faz com que a gente
Chore quando ninguém está vendo

 

É incontestável reconhecer a precoce e profunda compreensão de Gilberto Safra do significado daquele “bilhete na gaveta”, como um objeto que conta uma história, que une o que foi separado pelo tempo, pela distância e pela ausência. Ele reconhecia no bilhete o sentido do elo amoroso. Algo a respeito de uma verdade reverberou na sua interioridade gerando o impacto e o encantamento. Ali estavam as sementes do saber a respeito dos fenômenos transicionais, objetos transicionais, espaço potencial, etc.  Eu costumo usar a seguinte expressão corpórea para indicar esse fenômeno: o gongo ressoou lá dentro.

Mais tarde, terminando a faculdade de psicologia, Gilberto conheceu a obra de Donald W. Winnicott, sendo um dos principais introdutores desse pensador no Brasil: “fui reconhecendo em Winnicott uma alma irmã” (2022). Conhecimento é reconhecimento.

O tempo passou.

Há alguns anos, Gilberto Safra viveu um novo encontro: reconheceu Pavel Florensky. Ele era um filósofo russo, matemático, físico, teólogo e artista. Novamente Gilberto nos presenteou com o ensino da obra desse grande pensador, num trabalho incansável e abnegado.

Com certa dose de ousadia, destaco aqui na imensidão complexa do pensamento de Florensky, algumas considerações que ele faz sobre o processo do conhecimento. Conhecer, para ele, não é ato cognitivo. É ato afetivo, no qual também participam a mente e a racionalidade. Ele propõe conhecer com o coração. É o coração compadecido em estado de disponibilidade e cordialidade (aquilo que conforta o coração) que permite o encontro com o outro. Cai por terra a premissa de Descartes “penso, logo existo”.

O conhecimento desse ponto de vista é um reconhecimento que vem do anseio originário de um encontro com aquilo que Florensky denomina VERDADE FUNDAMENTAL: o que ressoa lá dentro. Daí, segundo Safra, a expressão humana: “isso faz sentido”, quando o saber não desperta estranheza, mas sim parece familiar.

Dessa forma, paradoxalmente o sofrimento do outro é do outro, é meu e é de todos.  Eu reconheço esse sofrimento em minha interioridade e na interioridade da coletividade. Assim ele me envolve, deixando de ser uma operação do eu para ser um encontro.

Fiel a essa premissa e mantendo de lado maiores explicações, acredito que um coração compadecido reconhece “Aquellas Pequeñas Cosas” que nos faz chorar quando ninguém nos vê.

Conhecer é reconhecer.

Respostas de 2

  1. Obrigada Ana por nos contar o impacto desta música espanhola no coração do Gilberto ainda jovem. E dos frutos tão fortes que ao longo dos anos este mesmo coração nos vem ofertando!

    1. Querida Cris, obrigada pelo seu gentil comentário. Me junto a vc nessa gratidão imensa aos frutos que o menino/ homen Gilberto Safra nos oferece sem cessar.

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